Dízimo: fundamentos antropológicos, histórico-bíblicos e teológicos




Ordem antropológica

Para se falar de dízimo, é preciso, antes de tudo, considerar uma verdade de ordem antropológica e histórica: o homem sempre se viu na necessidade de oferecer algo à Divindade, de desfazer-se de algum bem seu para consagrá-lo a Deus.

Na verdade, o dízimo bíblico é apenas uma das formas pelas quais o homem tem expressado esse seu relacionamento com a Divindade. Outras formas historicamente detectáveis ao longo dos tempos são: o oferecimento das primícias, o pagamento de impostos ou tributos religiosos, os sacrifícios, os votos e promessas, obras de arte, etc.

O homem é um ser naturalmente religioso, isto é, o intercâmbio com a Divindade sempre caracterizou o seu modo de ser em todos os tempos e culturas: sejam mencionados os agradecimentos pelos benefícios, os pedidos de favores, a reconciliação, o reconhecimento da bondade divina, a atenção à vontade do alto... Tudo isso podemos encontrar onde quer que o homem se tenha feito presente.  É, pois, sobretudo em relação à religiosidade natural do homem que devemos entender e fundamentar o dízimo. Este é um fenômeno essencialmente religioso.

É claro que a religiosidade natural do homem expressa-se de diversos modos, e podemos dizer que há expressões religiosas mais primitivas ou mais maduras. Há motivações marcadas pelo temor ou pelo amor; há atitudes esclarecidas ou supersticiosas. O certo, porém, é que, todas as culturas, desde o homem pré-histórico, sempre foram marcadas pela religiosidade do homem, que o leva a oferecer algum bem (valor) à Divindade. Trata-se de uma constante humana.

Nós cristãos também temos nossos bens que oferecemos a Deus, e o fazemos dentro de nossa concepção de Deus. Deus, embora habitando numa luz inacessível, não quis ficar totalmente invisível para nós. Em Jesus, assumiu um rosto humano, e falou-nos como a amigos, convidando-nos a entregarmo-nos a seu amor. Nossa relação cristã com Deus tem como base, portanto, o amor que Deus mesmo nos dedica e que nos impele a amar.

Possuindo tal compreensão, podemos verificar como este fenômeno religioso foi entendido e vivenciado nos relatos vétero-testamentário do povo de Deus, no Novo Testamento e na História da Igreja até chegarmos a uma compreensão teológica do dízimo.

Antes da Lei Mosaica

A Bíblia está fundamentalmente marcada pela religiosidade humana. É, antes de tudo, um livro religioso. Desde suas primeiras páginas, testemunha a dependência do homem para com Deus ao falar da criação. É verdade que reconhece a primazia humana entre as criaturas terrestres, mas vê a grandeza do homem, criado à “imagem e semelhança” do próprio Deus, sob a dependência e providência divinas.

O relato da criação nos mostra o homem como cultivador e zelador dos bens de Deus (cf. Gn 1,8-15), mas nos mostra também que este mesmo homem deve reconhecer a soberania de Deus, deixando uma parte desses bens reservada exclusivamente a Deus (cf. Gn 1,16s; 3,5.22).

Caim e Abel são dois representantes da humanidade primitiva. Um dedica-se ao trabalho agrícola, o outro à criação de gado, que são as duas atividades produtivas essenciais. O relato nos mostra ambos a oferecer a Deus parte dos frutos de seu trabalho (cf. Gn 4,3-4).

Noé, pai de uma nova humanidade, após o dilúvio, oferece a Deus um sacrifício (cf. Gn 8,20) e Deus faz uma aliança com ele e com sua descendência.

A partir de Abraão já adentramos as tradições referentes especificamente ao povo israelita. Abraão é considerado o pai da fé, uma vez que movido por ela, saiu de suas acomodações territoriais e familiares e constituiu o povo de Deus. Gn 14 apresenta-nos Abraão, depois de uma ação bélica vitoriosa, carregado de botins de guerra, a oferecer “a décima parte de tudo” ao sacerdote do Deus Altíssimo, Melquisedec, que acabava de abençoar Abraão (cf. Gn 14,18-20).

O dízimo entregue por Abraão ainda não é o dízimo prescrito pela legislação mosaica. Abraão viveu cerca de meio milênio antes de Moisés. Mas a atitude do pai da fé expressa sua religiosidade e o costume antigo de consagrar dízimos aos reis, que em geral exerciam também funções sacerdotais. Os israelitas, ao entregarem o dízimo segundo as prescrições mosaicas, terão a satisfação de ver em Abraão o patriarca que os precedeu também nisto.

Devemos notar ainda que a oferta de Abraão não é feita diretamente a Deus, mas a seu representante Melquisedec. Essa será a forma de ofertar a Deus que irá prevalecer entre os israelitas, ainda que não se exclua totalmente que o indivíduo possa praticar outras formas de oferta.

O patriarca Jacó também deu o exemplo da disposição de consagrar o dízimo: “Pagarei o dízimo de tudo  que me derdes, ó Senhor” (Gn 28,22). Ele é fiel e cumpre o seu voto perante Deus (Gn 35,1-8.14).

Portanto, embora não mencionem uma lei do dízimo, as antigas tradições sobre os patriarcas evidenciam que eles conheciam e praticavam o costume de entregar o dízimo.

Outro exemplo ainda de espontânea contribuição de bens materiais para o serviço de Deus e de seu culto, temos, quando Moisés, no deserto, recolhe doações para a construção do tabernáculo (cf. Ex 25,1-9).

A legislação mosaica

A história do dízimo como instituição legal entre o povo israelita percorre um longo caminho. Podemos distinguir várias “camadas” na legislação mosaica. Deve-se notar que a legislação mais antiga ainda não traz uma lei do dízimo, mas sabemos que ele era praticado.

Uma legislação bem antiga, denominada “código da Aliança”, motiva o israelita a não adiar a oferta tomada do produto da eira e do vinho novo (Ex 22,28), e acrescenta-se a exigência da oferta das primícias (v.29s).  Quando o povo de Israel pede um rei, o profeta Samuel adverte que o rei terá direito de recolher os dízimos das semeaduras, das vinhas e dos rebanhos.

Em Levítico 27, 30-33, temos uma motivação para a entrega dos dízimos, que soa bem antiga: Os dízimos são propriedade do Senhor, porque dele é toda a terra e seus produtos. A Deus pertencem os dízimos dos produtos do solo e das árvores (v.30) como também os dos rebanhos (v.32).

Já a legislação de Números 18,21-32 acentua que os levitas têm direito de receber o dízimo, uma vez que se dedicam ao serviço do santuário e, por isso, não receberam território próprio (“herança”) como as demais tribos; por sua vez, os levitas devem entregar ao sacerdote Aarão uma décima parte dos dízimos que tiverem recebido, ou seja, um “dízimo do dízimo” (Nm 18,26). Essa legislação está ligada a ideia de conquista da terra de Canaã, e não estipula o lugar onde se devem entregar os dízimos.

É a legislação deuteronomista (cf. Dt 12,6.11.17) que estipula que os dízimos não devem ser entregues em outros santuários, senão no de Jerusalém. Como tal determinação tornava às vezes por demais oneroso o seu cumprimento, a legislação permitia que se trocasse os dízimos em espécie por dinheiro, que, por sua vez, podia ser reconvertido em espécie em Jerusalém (cf. Dt 14,22-26). Essa legislação decorre da centralização do culto efetuada pela reforma do rei Josias (pelo ano de 620 a.C.). O texto, porém, cuida de que não sejam negligenciados os direitos dos levitas que moravam em outras cidades (v.27), bem como, a cada três anos, o atendimento, mediante os recursos obtidos pelo dízimo, do estrangeiro, do órfão e da viúva, portanto dos necessitados (v. 28-29).
Dt 26,1-11 descreve o ritual das primícias com a respectiva oração que o ofertante pronunciava. Quando o israelita queria “resgatar” (retomar) algo que deveria entregar como dízimo (entenda-se a décima parte), devia compensar seu valor e acrescentar 1/5 do valor “multa” ou “ágio” de 20% (cf. Lv 27,31 [5,16]; 27,14s.19).

Novo Testamento

No novo Testamento, podemos ver uma certa polêmica contra os exageros da praxe do dízimo mosaico como então concebido; e a consciência de que todos os cristãos devem dar sua contribuição material.

Jesus denuncia o exagero dos doutores da Lei que, no tempo do NT, haviam estendido o dízimo até às especiarias (cf. Mt 23,23: menta, anis, cominho), enquanto não levavam em conta coisas muito mais básicas da Lei (cf. também Lc 11,42). Jesus não desautoriza o dízimo, mas chama a atenção para os fundamentos da religião e o perigo de que sejam submergidos por práticas hipócritas.

O que Jesus condena é, na verdade, uma inversão de valores. Combate sempre a hipocrisia. Vem ao caso, o episódio do fariseu auto-suficiente que subiu ao Templo para orar, vangloriando-se de que “pagava o dízimo de tudo” (Lc 18,12). Em Mt 17,24-27, temos o relato segundo o qual Jesus, assim como todo judeu, pagava um tributo ao Templo. Não se trata aqui do dízimo evidentemente. Era um tributo entregue anualmente. Contudo, Jesus só o fazia para não escandalizar, prevenindo que “os filhos do Reino” estavam isentos. Pode-se dizer que os cristãos, desde o início, se sentiram desobrigados da legislação mosaica, pois já não estão sob o regime disciplinar da antiga Lei. De fato, a Igreja primitiva não praticou o antigo dízimo.

Mas temos no NT evidentes testemunhos – e também princípios explícitos – de que o cristão deve dar a sua contribuição material para as necessidades da comunidade religiosa e o andamento do ministério da Igreja. Ao enviar os discípulos, Jesus diz expressamente que eles têm o direito de serem sustentados por aqueles a quem anunciam o Reino (cf. Lc 10,2-10). O operário é digno de seu sustento (cf. Mt 10,10). Quando Jesus também manda dar a Deus o que é de Deus (cf. Mc 12,13s), pode-se, por inclusão, entender todos os deveres religiosos, inclusive a manutenção do culto.

Paulo organiza uma coleta em favor da Igreja-mãe de Jerusalém (cf. 2Cor 8,1-9,15), argumentando com a comunhão na fé (9,13). Em Gl 6,6, temos o seguinte princípio: “O catecúmeno reparta todos os seus bens com aquele que o catequiza”. O pensamento básico do Apóstolo, vê-se em 1Cor 9, 4s.

Levando em conta a prática do dizimo entre os cristãos é necessário portanto observar três fases da história naquilo que diz respeito a compreensão e prática do dízimo, podemos fazer uma análise da seguinte forma:

Até o século V

Embora a legislação sagrada dos judeus impusesse a Israel a prática do dízimo, entre os cristãos dos primeiros séculos prevalecia a consciência de que o Evangelho havia levado à consumação as obrigações rituais e disciplinares da Lei de Moisés, colocando o definitivo em lugar do provisório. Cf S. Irineu (+ 202 aprox.) Adv. Haer. IV 18,2 e Santo Agostinho (+430), In Ps 146,17.

Os pastores da Igreja, portanto, não pensaram, a princípio em impor aos cristãos o pagamento do dízimo. Todavia, a antiga literatura cristã registra exortações dirigidas pelas autoridades eclesiásticas ao fiéis, no sentido de oferecerem algo de seus haveres ou das primícias de suas colheitas aos ministros do Senhor e aos irmãos necessitados, a fim de os sustentar. Tais obrigações procederiam da caridade do povo de Deus e não de uma imposição propriamente jurídica.

Um dos principais testemunhos a respeito é o da Didaqué, oriunda da Síria ou da Palestina, por volta de 90/100 d.C: “Todo verdadeiro profeta que quer estabelecer-se entre vós, é digno de seu alimento… Por isso tomarás primícias de todos os produtos da vindima e da eira dos bois e das ovelhas e darás aos profetas, pois estes são os vossos grandes sacerdotes. Se, porém, não tiverdes profetas, dai-o aos pobres… Do mesmo modo, abrindo uma bilha de vinho ou de óleo, toma as primícias e dá-as aos profetas. E toma as primícias do dinheiro, das vestes e de todas as pessoas e, segundo o teu juízo, dá-as conforme a lei”. (c.XIII). Note-se que no texto assim transcrito se trata de primícias e não de dízimo.

S. Irineu considerava o dízimo abolido; em seu lugar teria entrado o conselho evangélico de dar os bens aos pobres (Adv. Haer. IV 13,3). A Didascália, compêndio de normas eclesiásticas oriundo da Síria entre 250 e 300, refere um ensinamento assaz rico neste propósito: “Reconhece ao bispo o direito de se alimentar do que a Igreja recebe, como faziam os levitas do Antigo Testamento, desde que o bispo tome o cuidado de prover a necessidade dos diáconos, das viúvas, dos órfãos, dos indigentes, dos estrangeiros (c. VIII).

Todavia, dirigindo-se aos fiéis, diz o texto da Didascália: “O Senhor vos libertou… para não estardes mais presos aos sacrifícios, às oferendas… e também aos dízimos, às primícias, às oblações, aos dons e aos presentes; outrora era absolutamente necessário dar essas coisas. Mas já não estais obrigados por tais determinações. Por isto, na medida em que o puderdes, terás o cuidado de dar”. Como se vê, este texto tenciona ressalvar, de um lado, a liberdade dos cristãos em relação à Lei de Moisés e, de outro lado, a obrigação de justiça e caridade que lhes incumbe em relação aos ministros e ao próximo.

A Constituição Apostólica Egípcia, sob o nome do Apóstolo são Tomé, recomenda aos fiéis que deem o alimento material a quem lhes fornece o espiritual, mas não desce a pormenores sobre a natureza e a quantidade dessa contribuição.

Descendo no decorrer do tempo, vai-se notando maior rigor nas exortações feitas em favor das contribuições dos fiéis. Em 380, as Constituições Apostólicas, compiladas na Síria, mencionam o pagamento do dízimo em sentido amplo. Este era entregue ao bispo, o qual se encarregava da justa distribuição: serviria aos ministros do culto e aos irmãos indigentes.

São João Crisóstomo, como bispo de Antioquia na Síria, fazia interessante observação, datada aproximadamente de 390: O total das diversas contribuições (dízimos, primícias e outras oferendas) dos fiéis para a Igreja, equivale, geralmente, a um terço das rendas de cada cristão; dar a metade das mesmas não seria exagerado. Que dizer, porém, daqueles que recusam dar até mesmo a décima parte dos seus proventos?

O contexto leva-nos a ver que os dízimos mencionados por São Jerônimo, em seu comentário sobre Malaquias profeta, incute o dever das contribuições dos fiéis em termos muito fortes. Como se depreende, até o sec. V os documentos eclesiásticos apelam para a generosidade dos fiéis e supõem certa correspondência da parte dos mesmos no tocante ao sustento da Igreja, dos ministros do culto e dos irmãos. Todavia, não se encontra menção de sanção ou de penas canônicas para quem se subtraia às oblações praticadas na Igreja.
Do século VI à Revolução Francesa (1789)

A praxe de contribuir para cobrir as necessidades da Igreja ia se difundindo no Ocidente. Havia, porém, exceções da parte dos contribuintes.

Em vista disto, os Concílios foram intervindo nesse setor. O Sínodo Regional de Tours (Gália), em 567, promulgou, por exemplo, a seguinte determinação: “Instantemente exortamos os fiéis a que, seguindo o exemplo de Abraão, não hesitem em dar a Deus a décima parte de tudo aquilo que possuam, a fim de que não venha a cair na miséria aquele que, por ganância, se recuse a dar pequenas oferendas… Por conseguinte, se alguém quer chegar ao seio de Abraão, não contradiga o exemplo do Patriarca, e ofereça a sua esmola, preparando-se para reinar com Cristo”.

Esta é a primeira recomendação de dízimo feita pelos bispos, já não como pregadores ou doutores, mas como legisladores. Contudo, note-se que não impuseram sanção aos transgressores. A justificativa apresentada pelo referido Concílio de Tours em favor dos dízimos, era a necessidade de expiar os pecados da população, sobre a qual pesavam guerras e calamidades.

Mais um passo foi dado no Concílio de Macon (Gália), em 585, quando os padres conciliares houveram por bem impor a excomunhão a quem se furtasse a pagar sua contribuição à comunidade eclesial. O dever moral torna-se também obrigação jurídica. A evolução se explica através das difíceis condições em que se achava o povo cristão (clero e fiéis) na Europa do séc. VI: as invasões bárbaras, a queda do Império Romano havia acarretado o caos e a insegurança entre as populações. Daí a necessidade de que os bispos despertassem mais vivamente os fiéis para participarem dos interesses de subsistência das suas comunidades. Em Macon, notam os historiadores que não houve apenas a recomendação de um costume antigo, mas uma autêntica inovação.

A legislação das diversas províncias eclesiásticas nos séculos subseqüentes repetiu várias vezes a determinação do Concílio de Macon. O poder civil haveria de apoiar cerca de dois séculos mais tarde, sob Carlos Magno, a legislação eclesiástica, confirmando-a com uma sanção civil. Com efeito, a lei capitular dita “de Heristal”, em 779, manda aos cidadãos franceses pagar o dízimo à Igreja, ficando o bispo encarregado de o administrar; os contraventores sofreriam a sanção imposta aos infratores das leis civis, ou seja, provavelmente a multa de 60 soldos. Em 780 e 801 a ordem foi reiterada.

Nos séculos seguintes, encontram-se numerosos documentos eclesiásticos e civis das diversas regiões da Europa que visam regulamentar a praxe dos dízimos e estipulam qual deva ser:

– a matéria sujeita a dízimos (frutos da terra, produtos de animais…);
– quais as pessoas sujeitas a dízimos (mosteiros foram isentos);
– quais as pessoas a quem caberia o direito de cobrar o dízimo (os párocos, os bispos…);
– quais as aplicações do dízimos (sustento do culto, manutenção do clero ou “côngrua”, atendimento aos pobres);
– quais os modos de perceber ou cobrar dízimos.

A partir da Revolução Francesa (1789) até os nossos dias.

No século XVIII, o dízimo havia caído no desagrado dos fiéis cristãos. Já quase não preenchia as suas finalidades. Com efeito, destinado a atender as paróquias e ao seu clero, os dízimos, em sua maior parte, iam beneficiar o alto clero e instituições estranhas ao serviço paroquial. Os grandes arrecadadores de dízimos eram prósperos (havia bispos e prelados diversos, ou seja, leigos que traziam títulos eclesiásticos quase exclusivamente para se beneficiar dos rendimentos materiais respectivos), ao passo que grande número de presbíteros recebiam uma “côngrua” insuficiente. Em suma, as quantias arrecadadas não eram devidamente aplicadas aos fins estipulados pela legislação eclesiástica e civil.

Por sua parte, os economistas do século XVIII eram hostis ao dízimo, porque não era calculado sobre a produção líquida; Adam Smith o condenou por não corresponder ao seu conceito de imposto; este deveria ser determinado e não arbitrário; a quantia a ser paga e a época do pagamento deveria ser pré-estabelecidas.

Voltaire e os filósofos pretendiam demonstrar que o dízimo não era de direito divino. Os magistrados, o baixo clero e os agricultores eram contrários a este tipo de imposto. Em consequência, numerosas petições foram enviadas ao parlamento francês, pedindo ou a reforma ou a supressão dos dízimos.

A Assembleia Constituinte de França resolveu finalmente extinguir esse uso. Na noite de 4 de agosto de 1789, os deputados do clero renunciaram aos seus privilégios e, em particular, aos dízimos. Aos 21 de setembro de 1789, o rei Luis XVI promulgou o decreto que declarava extinta a praxe dos dízimos.

A nova legislação francesa estendeu-se às demais nações européias, de sorte que até 1848 foi abolida em todo o continente europeu, a cobrança dos dízimos; ficou apenas uma pequena porção da Itália sujeita a esse regime, até 1887.

A moção abolidora foi, em parte, inspirada pelo espírito anticlerical, mesmo anti-eclesial, que se implantou em numerosos países nos séculos XVIII e XIX, nos setores sociais e industriais.

Levem-se em conta, igualmente, os abusos e as distorções por que passou a prática do dízimo, tornando-a muitas vezes antipática ao povo de Deus. Por último, é de notar a contribuição que o espírito capitalista deve ter dado ao descrédito e ao declínio do sistema de dízimos.

Contudo, no decorrer da história da Igreja contemplamos uma nova luz sobre a reflexão em torno da praxe do dízimo, que se dá no Concílio Vaticano II; cf Const. Lumen Gentium nº 2: “Cada cristão, do seu modo, deve colaborar para o crescimento do Reino; ora uma das formas de o fazer, é contribuir para o sustento material da Igreja” (o que, naturalmente, ainda é menos valioso do que o exercício direto do apostolado).

Tenham-se em vista as palavras do decreto Apostolicam Actuositatem: “Tão grande é neste corpo (da Igreja) a conexão e a coesão dos membros, que o membro que não trabalha para o aumento do Corpo, segundo sua medida, deve considerar-se inútil para a Igreja e para si mesmo” (nº 2).

Em l917 o Código de Direito Canônico então promulgado, rezava: “No tocante ao pagamento de dízimos e primícias, observem-se os estatutos e os louváveis costumes vigentes em cada região”.

O novo Código, promulgado em l983, já não fala de dízimo, mas recorre à linguagem genérica: “Os fiéis têm obrigação de socorrer às necessidades da Igreja, a fim de que ela possa dispor do que é necessário para o culto divino, para as obras de apostolado e de caridade e para o honesto sustento dos ministros.” (Revista Pergunte e Responderemos, nº 514, abril de 2005, pág. 165).

Dízimo no Brasil

“Os dízimos, definidos com precisão pela Lei de Moisés, deixaram de ter vigor no início da era cristã. Todavia, a partir do século VI, alguns Concílios começaram a estipular o pagamento de dízimos em vista do sustento, do culto e das obras da Igreja. As autoridades civis, a partir de Carlos Magno, confirmaram as leis da Igreja. A instituição ficou em vigor até o século XVIII, quando a Revolução Francesa resolveu extinguir a praxe na França, sendo esta atitude imitada pelos demais governos europeus, durante o século XIX. No Brasil, a Proclamação da República acarretou a abolição das leis dizimistas.

Com isso  o 5º mandamento da Igreja passou a ser letra morta. Observavam-se os quatro primeiros, mas não o quinto, que dizia: “Pagar o dízimo segundo o costume”. O costume era não pagar. Ninguém pagava. Não era má vontade, mas falta de alguém que explicasse ao povo as razões do dízimo e organizasse o estilo de recebimento.

“Foi em l970, durante a XI Assembleia Geral da CNBB, em Brasília, que uma Comissão Especial foi nomeada para continuar os estudos já iniciados anteriormente com o folheto “Campanha Nacional do Dízimo”.

O Plano elaborado pela Comissão foi aprovado pela XII Assembleia Geral do Espipocado, em Belo Horizonte, em fevereiro de 1971. A partir de então, começou a movimentação no sentido de adoção do novo sistema.

As Assembleias Gerais XIII (São Paulo, 1973) e XIV (Itaici, 1974), voltaram a tratar do assunto, mas verificaram que não se podia pretender impor um mesmo esquema de trabalho em todas as regiões. A XIV Assembleia concluiu seus estudos sobre a questão, firmando, entre outros, o seguinte princípio: “Todas as dioceses do Brasil devem ter como meta a implantação do dízimo como sistema de contribuições periódicas que substitua progressivamente o sistema de taxas e espórtulas”.

Teologia em torno ao Dízimo

Após termos traçado um caminho antropológico, bíblico e histórico do dizimo, podemos com segurança nortear o caminho teológico pelo qual se deve compreender e praticar o dízimo na Igreja.

Teologicamente, a benção precede o ato de consagrar o dízimo. Sem essa benção preliminar do criador é impossível consagrar o dízimo.  Dízimo é o reconhecimento da bondade “benção” de Deus e, portanto, sempre uma resposta e não um prelúdio. Nós o amamos o por que ele nos amou por primeiro. (Cf. 1 Jo 4, 19)

Aqui encontramos conceitos teológicos que espalham luz sobre o significado do dízimo. Esses conceitos, que fundamentam a prática do dízimo, sugerem que dízimo não é um fenômeno isolado na experiência religiosa de uma pessoa, mas pertence à compreensão teológica que ela tem do mundo ao seu redor e sua função dentro dele.

A palavra hebraica traduzida como “Criador” (qanah) vem de uma raiz que significa “adquirir, possuir”. Tudo no céu e na terra pertencem a Deus porque Ele os criou. O direito de propriedade é baseado em Sua atividade como Criador.

Deus é Quem dá as bênçãos e elas são sempre uma expressão de Seu amor e cuidado por nós. Dízimo é o reconhecimento da bondade de Deus e, portanto, sempre uma resposta como ato de fé. Abraão estava bem seguro do fato de que quem o enriquecia era o Senhor. Estava persuadido de que sua segurança financeira não dependia de qualquer poder, mas das bênçãos de Deus. (Gn 14, 21-23).

“Bendito seja o Deus Altíssimo, que entregou os teus inimigos em tuas mãos!”. E Abrão deu-lhe o dízimo de tudo.” (Gn 14, 18-20) Este episódio bíblico sugere que o dízimo tem motivações teológicas. Nesse caso específico, o dízimo de Abraão foi o reconhecimento que foi o Deus Altíssimo que lhe deu a vitória.

O notório é que a vida é tão frágil que não pode ser plenamente preservada por esforços humanos. Há forças que ameaçam a vida do homem e só Deus pode derrota-las completamente. Portanto, o dízimo expressa o fato de que a vida não nos pertence, mas é do Senhor (não só porque nos criou, mas porque nos preserva num mundo de pecado e morte).

Portanto o dízimo não é uma invenção humana e nem uma forma da Igreja explorar financeiramente as pessoas ou uma forma de manutenção física das pessoas que trabalham para Deus. Pensar desta forma é minimizar a existência do dízimo, é reduzi-lo a um plano financeiro, o que está muito distante da reflexão teológica do dízimo. Pois o dízimo é sobretudo um ato de fé e a fé é uma resposta do coração humano a revelação de Deus.


Dízimo é doação, missão, comunidade. É a realidade de uma Igreja comunidade de comunidades, que recebeu a missão de evangelizar! E esta missão requer entrega, doação, generosidade. O dízimo expressa uma compreensão de fé que leva a pessoa batizada a realizar a missão de anunciar o “Evangelho da Alegria” Evangelização que acontece como presença da comunidade, como anuncio da palavra e como obra de misericórdia.  Que este ANO DIOCESANO DO DÍZIMO sirva para nos aproximarmos de Deus pela experiência fiel do dízimo, pois Ele permanece sempre fiel em seu amor para com cada um de nós.

Organização: Pe. Washington Dioleno Araújo Tavares
(Pároco in solido na paróquia São João Batista)

Formação:
- Curso de Filosofia pelo IRFP -CNBB – Instituto Regional de Formação Presbiteral Norte II – CNBB
- Curso de Teologia pelo INVIZE – Instituto Arquidiocesano de Belém Dom Vicente Zico 
- Estudos teológicos na FACAPA – Faculdade Católica de Pouso Alegre – MG
- Licenciatura Plena Filosofia pelo Instituto de Ensino Superior do Amapá – IESAP
Pós-graduado em Ensino Religioso - UNINTER
Pós-graduando em Docência no Ensino Superior - UCDB



Obras consultadas:
1 - Dicionário Católico Básico. Daniel L. Lowery. Editora Santuáro.
2 - Comentário Bíblico. Dianne Bergant CSA e Robert J. Karris OFM (Org.) Edições Loyola.
3 - Código de Direito Canônico. Edições Loyola.
4 - Bíblia Sagrada. Editora Ave Maria
5 - Dicionário de Termos Religiosos e afins. Aquilino de Pedro. Editora Santuário.
6 - O Quinto Mandamento da Igreja. Revista Pergunte e Responderemos, nº 530. 7 - Estevão Bittencourt, OSB. Editora Lumen Christi.
8 - Os Dízimos: que são? Revista Pergunte e Responderemos, nº 514. Estevão 9 - Bittencourt, OSB. Editora Lumen Christi.
9 - Pastoral do Dízimo. Estudos da CNBB nº 8. Edições Paulinas.
10 - DÍZIMO: FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS E ESCRITURÍSTICOS. Artigo de Padre Elílio. http://padreelilio.blogspot.com/2010/07/dizimo-fundamentos-antropologicos-e.html
11 - O QUE ORIENTA A FÉ CATÓLICA SOBRE O DÍZIMO. Artigo de Monsenhor Estanislau Polakowski. http://www.santuariofatima.org.br/sobre%20o%20dizimo.html.


Comentários

  1. Parabéns pela exposicao. É muito importante explucar qual o significado puro do dizimo, que e um mandamento divino e nao uma invencao humana. E uma pena que muitos falsos pastores acabam por perveter o seu sentido.

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  2. Olá, bom dia. Eu acho interessante a abordagem desse tema na visão antropológica, pois o homem sempre buscou estabelecer um conexão com o divino, com o transcendental, com aquilo que ele não conhece totalmente e procura também firmar um laço de ligação, o dízimo parece esse laço, assim também como muitas outras coisas.

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